sexta-feira, 4 de março de 2011

Sensibilidade para poucos

Já disse aqui em outras oportunidades que o cinema brasileiro padece de um grande mal. É uma cinematografia que se divide entre produções populares, voltadas ao grande público, e os filmes mais autorais, que ficam praticamente restritos ao circuito dos festivais. Para diretores, produtores e distribuidores o meio termo parece uma utopia, que de tão distante não vale a tentativa de ser alcançada. Quem perde com isso? Todo mundo, inclusive o público, que fica privado de ver boas obras ou se vê obrigado a engolir as farsas novelescas da Globo Filmes. Por essas e outras que produções de qualidade como ‘À Deriva’ se transformam em objeto para cinéfilos esforçados.
Pode-se dizer que ‘À Deriva’ teve uma estreia de gala, sendo exibida na seção ‘Um Certain Regard’, mostra paralela do Festival de Cannes. A produção foi bem recebida, o que nem sempre significa despertar o interesse dos distribuidores nacionais. Na direção está um dos nomes promissores da nossa cinematografia, o paulista Heitor Dhalia. Após ser lançado com o ousado, porém irregular ‘Nina’, mostrou evolução no interessante ‘O Cheiro do Ralo’. Os pré-requisitos para exigir um pouquinho de atenção dos exibidores e do público haviam sido cumpridos, mas...
A história de ‘À Deriva’ se passa no início dos anos 80 na praia de Búzios, reduto da classe média alta carioca. É lá onde Filipa (a estreante Laura Neiva, de 14 anos) passa as férias com os pais e dois irmãos. Seu verão é marcado pelas descobertas da adolescência, com o despertar amoroso e sexual, e por uma crise pela qual passam seus pais. O pai Mathias (o francês Vincent Cassel) tem um caso extraconjugal com uma jovem, enquanto a mãe Clarice (Débora Bloch, quebrando um longo hiato nas telas de cinema) se afunda no alcoolismo.
Como poucos na atual geração de cineastas brasucas, Heitor Dhalia demonstra uma evolução sensível. Em ‘Nina’ o roteiro pouco encorpado se perdia no meio das firulas visuais e da tentativa de imprimir uma linguagem mais experimental. Com ‘O Cheiro do Ralo’ o cineasta se conteve e aprimorou a narrativa, fazendo uma obra menos pretensiosa e mais funcional. ‘À Deriva’ mostra um diretor amadurecido, que se afasta do humor negro que até então o caracterizava para apostar em uma narrativa mais centrada, poética e em harmonia com outros elementos.
Segundo o diretor, sua inspiração maior foi a nouvelle vague, em especial os filmes de Eric Rohmer, cujas relações entre os personagens se fecham dentro de uma geografia. A praia e principalmente a água parecem ter uma ligação direta com os personagens e seus sentimentos, que vão e vêm com as ondas. Fotografia e trilha sonora completam um painel que por vezes exala sensualidade, em outras transborda sensibilidade. 
Apesar de todas suas qualidades, ‘À Deriva’ não se enquadra no padrão ‘acessível ao grande público’ considerado na hora da distribuição. Pouca gente viu, outras poucas ainda vão ver. E assim caminha o cinema brasileiro, com seus guetos e sua elite, à espera de uma engenharia que possa um dia construir a ponte que venha a uni-los.

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