sexta-feira, 18 de março de 2011

As várias vidas de Bob Dylan



Para um artista fora de série, uma biografia nada convencional. Seria tão bom se todas as cinebiografias incorporassem o espírito do biografado em questão, procurassem transpor para a tela não apenas sua vida, mas suas ideias e suas disfunções de personalidade. Que esperar de uma pessoa tão complexa como Bob Dylan, alguém que parece ter múltiplas facetas e se reinventou por diversas vezes ao longo de sua carreira? Tudo menos o trivial. A resposta, meu amigo, está no magnífico ‘Não Estou Lá’.
Esqueça a fórmula manjada e melodramática de filmes como ‘Ray’ (sobre Ray Charles) e ‘Johnny e June’ (sobre Johnny Cash). Jogue no lixo toda aquela idolatria malversada, apoiada em uma narrativa redentora pontuada por clichês. O diretor Todd Haynes se desfez de todas as artimanhas do cinema comercial e chutou para longe o modelo pré-concebido de cinebiografias lacrimosas. Talvez porque não seria justo pasteurizar o legado de um artista tão inventivo e controvertido quanto Bob Dylan.
De cantor de protesto, intitulado ‘a voz de uma geração’, a pastor dedicado a hinos religiosos. De artista provocador, avesso à mídia, a pai de família. Idolatrado por sua poesia urbana e execrado sob a acusação de ter se vendido ao sistema mercantilista. Assim é a trajetória de Bob Dylan, cantor, compositor, escritor e poeta cuja vida se divide em várias. Uma a uma, o diretor capturou seus fragmentos e construiu o mosaico de ‘Não Estou Lá’.
Todd Haynes selecionou seis atores diferentes, que dão vida ao cantor em cada uma de suas fases, usando pseudônimos reais e fictícios. A trajetória começa na pele de um garoto negro, Woody Guthrie (um dos ídolos de Dylan), jovem cantor com um talento fora de série, que percorre os Estados Unidos em vagões de trem durante a recessão do início do século 20. Em seguida, entra em cena Jack (Christian Bale), que surge como cantor de protesto para depois se transformar em pastor e se dedicar a canções gospel.
Em mais uma virada, nasce Robbie (o falecido Heath Ledger), cantor que deixa de lado o tom panfletário, se rende aos luxos da fama e à vida em família. Essa persona dá lugar a Jude (Cate Blanchett, sim, uma mulher), que representa o perfil mais conhecido de Bob Dylan: com sua personalidade extravagante, tem dificuldade em lidar com os holofotes, desfaz da mídia em entrevistas e compra briga com um jornalista renomado. Ao mesmo tempo, conhece artistas do quilate dos Beatles e do poeta marginal Allen Ginsberg. Por fim, surge na tela Billy the Kid (Richard Gere), isolado do mundo e recluso em seu interior.
Todas essas fases, porém, não são apresentadas de maneira linear. O vaivém humano-temporal é entrecortado por Charles Rimbaud (Ben Wishaw, se apresentando como o poeta francês), que a um interlocutor desconhecido destila sua poesia e observações venenosas. As canções de Dylan, por vezes reinterpretadas, completam um cenário metafórico, de intensa poesia literal e visual. A quem ainda não viu, é recomendável assistir primeiro a ‘No Direction Home’, documentário sobre o cantor dirigido por Martin Scorsese, para se sentir mais familiarizado com o intrigante, provocador e apaixonante universo dylaniano.

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