sexta-feira, 25 de março de 2011

Choque de realidade



Por mais que se aproximem do ‘mainstream’ e se rendam a alguns caprichos de Hollywood, certos cineastas jamais vão perder sua personalidade e a capacidade de realizar um cinema autoral. Podemos citar os irmãos Coen, David Lynch, Tim Burton e David Cronenberg. Este último tem sido criticado por alguns de seus velhos fãs por ter deixado de lado a ousadia que marcou parte de sua carreira para fazer um cinema mais comercial. Não sejamos injustos. É fato que o canadense abandonou as esquisitices de seus filmes anteriores, mas isso não torna menos brilhante sua mais recente produção, ‘Senhores do Crime’.
Quando se fala em David Cronenberg, o que vem à mente de imediato são criaturas escatológicas, experiências bizarras, personagens disfuncionais e uma linha tênue que separa a ciência do sobrenatural. Basta recordar de ‘Videodrome’, ‘Scanners’, ‘A Mosca’ e ‘Gêmeos – Mórbida Semelhança’. Ou ainda adaptações literárias até então inimagináveis como ‘Mistérios e Paixões’ (baseado na obra ‘Almoço Nu’, do doidão William Borroughs) e ‘Crash – Estranhos Prazeres’.
Cronenberg alterou sua trajetória em seu penúltimo filme, ‘Marcas da Violênca’, no qual apresentava uma história misteriosa, de alguém que escondia uma outra personalidade, mas sem nenhum requinte sobrenatural. Pelo contrário, o enfoque está em algo que se encontra cada vez mais incrustado na nossa realidade, o trauma e os efeitos da violência sobre as pessoas. Essa mesma violência é o mote de ‘Senhores do Crime’, sob outro viés, mas com a mesma tática do choque de realidade.
Ao atender uma jovem que morre após dar à luz, a enfermeira Anna (Naomi Watts) vai atrás da família da garota, a fim de encontrar alguém que possa cuidar da criança. Sua única pista é um diário escrito em russo, que a leva a três pessoas: Seymon (Armin Muller-Stahl), senhor a princípio simpático, mas que é um dos chefões da máfia russa em Londres, seu filho Kirill (Vincent Cassel) e o motorista Nikolai (Viggo Mortensen). Apesar de estar munida das melhores intenções, Anna vai descobrir que está envolvida em uma situação bem mais perigosa do que poderia imaginar.
Filmes sobre máfia remetem a um certo romantismo, de criminosos mergulhados em um universo de tamanho luxo e glamour que acaba ofuscando o sangue que corre entre seus pares. Cronenberg adota um olhar mais frio. Há a riqueza, o estilo (o centro das ações é um restaurante luxuoso), mas acompanhados de uma amargura constante, uma frieza presente no olhar e nos gestos de cada um dos personagens. O Nikolai de Viggo Mortensen (indicado ao Oscar com toda a justiça) é o mais perfeito exemplo, econômico nas palavras, direto nas atitudes e quase desprovido de sentimento.
Anna é uma ilha de humanidade em meio a pessoas que parecem ter perdido toda e qualquer sensibilidade ao longo de uma vida marcada pela violência. O diretor nos faz lembrar disso em cenas de violência crua, sem atenuantes. Talvez a mudança no cinema de Cronenberg não tenha a ver com interesses comerciais, mas com a adaptação aos novos tempos. A anormalidade não precisa mais vir do sobrenatural, ela já se faz presente nos próprios seres humanos.

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