quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Catástrofe minimalista


Steve Soderbergh é um cineasta curioso, que não cabe em um rótulo ou estereótipo. É alternativo demais para integrar o primeiro escalão de Hollywood ao mesmo tempo em que é muito mainstream para fazer parte da ala cult. Por mais que tenha ensaiado, jamais conseguiu ser unanimidade entre público ou crítica. Mostrou-se tão talentoso com ‘Irresistível Paixão’ e ‘Traffic’ quanto enfadonho com ‘Che’. Ou seja, é alguém de quem pode se esperar qualquer coisa a cada novo trabalho. Inclusive um filme envolvente e bem estruturado como ‘Contágio’.
Confesso que não esperava grande coisa de ‘Contágio’, que parte de uma premissa já explorada e regurgitada no cinema atual. De repente, uma misteriosa epidemia toma conta da humanidade: o que começa aparentemente como uma gripe mata as pessoas em questão de horas e se propaga a uma velocidade assustadora. Ingredientes perfeitos para bolar sequências de histeria coletiva, correria desenfreada, histórias patéticas de amor e heroísmo enquanto a humanidade tenta se salvar.
Porém, Soderbergh toma um caminho diferente. Primeiramente, não perde tempo com preliminares e rodeios para entrar no que realmente interessa. Logo na abertura vemos a personagem que dará o start para toda a catástrofe: uma executiva (Gwyneth Paltrow) que, ao retornar de Hong Kong, passa mal e morre de forma aterradora. Com ela, outras pessoas infectadas ao redor do mundo vão tendo o mesmo destino, em uma sequência de poucos minutos, mas de alta intensidade. Sem rodeios, o espectador é jogado para o centro do furacão prestes a se formar.
Retomando a fórmula utilizada em ‘Traffic’, Soderbergh explora a narrativa fragmentada, focando personagens diversificados em diferentes lugares. Temos o marido da executiva morta (Matt Damon), que tenta a todo custo proteger a filha, uma expert em epidemias (Kate Winslet) trabalhando para tentar controlar a doença, uma pesquisadora em busca das origens do problema (Marion Cotillard), um jornalista (Jude Law) de caráter dúbio levantado teorias da conspiração e uma cientista que acredita na cura para o mal.
Um cineasta popularesco qualquer apostaria na fórmula chavão de eleger um herói (ou um casal, como é de praxe) e conduzir a trama de modo a chegar em um final triunfante, em que o bem vence o mal. Já Soderbergh divide a responsabilidade entre todos esses personagens centrais, que de alguma forma contribuem para solucionar o problema, mas também se mostram frágeis e impotentes mediante uma ameaça tão poderosa. Com algumas exceções, não há espaço para subtramas melosas ou amenidades. Como em um documentário ou um reality show, o espectador também entra em uma corrida contra o tempo e a natureza. 
Na contramão das grandes produções, o clima de terror de ‘Contágio’ é quase minimalista. Vem da expressão das pessoas, do detalhamento dos gestos, do medo da aproximação e da sensação de acuamento. Mais do que a doença, Soderbergh reforça que o ser humano é um mal por si, cujo egoísmo é mais contagioso e fatal do que qualquer enfermidade.


quarta-feira, 2 de novembro de 2011

O despertar de um cineasta



Existe um estranho conceito no cinema brasileiro atual, de que aquilo que é feito para as massas não deve exigir muito de seu espectador. Consequentemente, abre-se espaço para uma outra vertente, onde causar estranheza é praticamente obrigatório para não correr o risco de ser enquadrado no filão popularesco. O resultado é uma polarização entre baixa qualidade para as massas e pretensão em excesso para plateias alternativas. Nesse momento de crise de identidade, ninguém melhor que Selton Mello, exemplo de talento e popularidade incorporados, para romper com esse desconfortável paradigma.
Ver ‘O Palhaço’, segundo filme de Selton como diretor, foi uma das experiências mais gratificantes que vivi na tela grande este ano. Não apenas por ser um belo filme, mas justamente por dar um novo alento à produção nacional, que há tempos parece ter se metido em um buraco negro. Seu novo filme vai em uma direção tão familiar aos vizinhos argentinos, mas incompreensivelmente tortuosa para os cineastas brasileiros: o de um cinema que dialogue com o grande público sem abrir mão de suas qualidades artísticas.
Surpresa ainda maior para quem viu sua estreia na direção, ‘Feliz Natal’, um drama denso, pesado, que fugia da imagem simpática do ator e se aproximava do cinema independente norte-americano. ‘O Palhaço’ nos apresenta um Selton Mello diferente: mais maduro, menos amargurado e com uma ciência maior daquilo que pretende como diretor. Com mais humor, mais cores e uma linguagem mais próxima do grande público, o filme faz rir sem em nenhum momento abandonar a aura melancólica presente desde sua abertura.
O personagem título é Benjamim (interpretado pelo próprio Selton), que em seu trabalho é conhecido como o palhaço Pangaré. Guardadas as devidas proporções, é uma espécie de Buster Keaton, conhecido como ‘o comediante que nunca ri’. Com a pintura no rosto, arranca risos de plateias pelo interior ao lado do pai (Paulo José), o palhaço Puro Sangue. Fora do picadeiro é um sujeito em busca de identidade, que mal consegue esboçar um sorriso, sonhando em comprar um ventilador e indeciso quanto aos rumos de sua vida.
Em um primeiro momento, ‘O Palhaço’ se apresenta como uma homenagem ao universo circense, cada vez menos em voga nas grandes cidades. Em outras oportunidades, remete ao humor inocente de grandes nomes como os Trapalhões e Mazaroppi. Mas Selton Mello vai muito além da simples nostalgia. Com um argumento aparentemente simples e de fácil absorção para o espectador, o jovem diretor nos conduz para uma viagem interior cheia de nuances, enriquecida por personagens caricatos, porém cheios de vida. 
Assim como ocorreu em ‘Feliz Natal’, Selton Mello reforça sua habilidade em selecionar os atores com que trabalha. Além de sua própria interpretação e a de Paulo José, suficientes para encher o filme, há o brilhantismo de algumas participações especiais, como as de Moacyr Franco e Jorge Loredo, intérprete do célebre personagem Zé Bonitinho. Melhor do que o prazer em assistir a um belíssimo filme é a sensação de ver nascer um cineasta promissor, que tem talento e cacife para dar a chacoalhada que o cinema brasileiro vem precisando.