sábado, 26 de março de 2011

Felicidade não tem sexo



Existem atores que valem um filme e filmes que se sobressaem por conta de um único ator. Não são raros os casos de filmes medianos, com histórias desinteressantes, mas que ganham vida por conta de uma única interpretação. Não que ‘Transamérica’, do estreante Duncan Tucker, seja um trabalho sem brilho. O ponto de partida da história, aliás, é bastante curioso. Mas se existe algo que pode ser considerado a alma dessa obra, ela se chama Felicity Huffman.
A atriz tem uma extensa carreira na televisão e ganhou notoriedade no cultuado seriado ‘Desperate Housewives’. No cinema, fez um papel menor aqui, outro ali e finalmente ganhou a oportunidade de sua vida ao ser escolhida para interpretar o personagem principal de ‘Transamérica’, um transexual em crise. O destino só não foi mais generoso com a atriz porque, como vivemos em um mundo injusto, ela acabou perdendo o Oscar deste ano para a insossa Reese Whitherspoon, de ‘Johnny e June’.
Em ‘Transamérica’, Felicity dá vida a Bree, que às vésperas de realizar o grande sonho de sua vida, uma operação para mudança de sexo, recebe uma notícia devastadora: ela tem um filho adolescente, fruto de um caso furtivo na juventude. Pior: o rapaz se prostitui e usa drogas. Acertar as contas com seu passado vira uma condição para que ela possa realizar a tão desejada operação. E lá segue Bree para tentar superar mais esse obstáculo.
De início ela tenta se livrar do rapaz, sem contar quem realmente é. Sem sucesso, mantém o segredo, mas concorda em levá-lo para a Califórnia e tentar arrumar alguma solução. A partir de então o filme embarca naquilo que já se tornou um certo lugar comum no cinema independente, um road movie em que personagens farão uma jornada interior que vai mudar suas vidas (vide ‘Flores Partidas’, de Jim Jamursch, o mexicano ‘E Sua Mãe Também’ ou o argentino ‘Família Rodante’). Entre situações tristes e divertidas, o espectador vai alimentando a expectativa sobre o aguardado momento em que todas as verdades virão à tona.
O grande diferencial, sem dúvida, é Felicity Huffman. Sua feição peculiar (não se trata exatamente de uma atriz bonita) fez com que não fosse necessário passar por uma metamorfose para dar vida a um personagem que já não é mais homem, mas ainda não é uma mulher. Sua discrição, os trejeitos, olhares perdidos e o cuidado com a voz garantem que Bree não caia no caricatural. A atriz sabe dosar com categoria o humor de situações cômicas e a melancolia de seu mundo dividido.
E não é apenas a dualidade sexual que é abordada ao longo do filme. A viagem dos personagens revela um mundo em que famílias se mostram felizes e sorridentes para a sociedade, mas guardam em seus interiores a intolerância e o desrespeito. É sintomática a cena em que um dos personagens diz para outra em um restaurante, minutos antes de iniciar uma discussão: “nós somos bem menos felizes do que aparentamos”. Mas se todos os personagens têm um passado a esconder, também nutrem a perspectiva de um futuro promissor.
O diretor Duncan Tucker conduz a história de maneira correta, sem apelar para o humor escrachado ou descambar para o piegas. Com a presença de uma excelente atriz, é o que basta para consagrar ‘Transamérica’ como um pequeno grande filme.

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