quinta-feira, 17 de março de 2011

A outra face da América


O cineasta dinamarquês Lars Von Trier é persona non grata nos Estados Unidos. Só porque um dia decidiu realizar uma trilogia crítica sobre o país, sem nunca ter colocado os pés em território ianque. A primeira parte foi ‘Dogville’, lançado em 2003, o qual justificou por que os americanos ficaram com seu avantajado ego ferido. A segunda, ‘Manderlay’, chega agora ao Brasil e também não poupa motivos para o Tio Sam torcer o nariz.
Antes de falar sobre ‘Manderlay’, cabe fazer uma breve introdução sobre ‘Dogville’, obra que dá início à polêmica análise de Von Trier sobre o american way of life. Como uma espécie de fábula ácida, um narrador conta a história de Grace, filha de um gangster que chega à cidadezinha do interior dos EUA que dá nome ao filme. Lá é recebida calorosamente, se incorpora à vida da comunidade e altera sua rotina. Quando os moradores começam a mostrar suas verdadeiras personalidades, Grace vai do céu ao inferno, vivendo um pesadelo que termina de maneira sanguinolenta.
Em ‘Manderlay’, o destino leva Grace (Bryce Dallas Howard, de ‘A Vila’, que substitui Nicole Kidman) à localidade do título, outro vilarejo perdido em algum lugar da América. Apesar de estar em pleno século 20, se depara com uma comunidade onde negros são mantidos como escravos, segregados e chicoteados por seus patrões. Mais uma vez ela resolve intervir, assumindo o comando, libertando os escravos e implantando um sistema ‘democrático’ para sobrevivência da comunidade.
Aos poucos, Grace vai percebendo que a relação entre empregados e patrões é bem mais complexa do que imaginava. Os extremos aparecem no veterano Wilhelm (Danny Glover), em quem ela encontra amparo para colocar suas ideias em prática, e no jovem rebelde Thimoty (Issac de Bankolé), pelo qual se divide entre o receio e a atração sexual. Como nem tudo é o que parece ser, novamente ela vai se ver logo em conflito com o mundo que criou.
A exemplo do primeiro filme, Von Trier lança mão de uma proposta estética ousada, em que praticamente não existem cenários. Os personagens se movimentam em grande palco, com poucos recursos cenográficos, onde linhas brancas e escritos no chão delimitam os espaços. No princípio causa certa estranheza, mas logo acaba servindo para reforçar o impacto do filme. Que se já não é o mesmo de ‘Dogville’, também não deixa o espectador indiferente.
Ao longo do filme, o cineasta mexe sem pudor em algumas feridas da sociedade americana, como o preconceito, a hipocrisia, a estereotipia e o intervencionismo. Alternando cinismo, ironia e agressividade, Von Trier mais uma vez constrói uma história em que coloca os americanos como vítimas de seu próprio egocentrismo. Em termos cinematográficos, um filme ousado, vigoroso e que se sustenta até os últimos minutos.
Para quem não assistiu a ‘Dogville’, é recomendável fazê-lo antes de encarar ‘Manderlay’. Não tanto pela história que une as duas películas, mas para (tentar) se familiarizar com o estilo e a proposta diferenciada de Von Trier. A terceira parte da trilogia está prevista para 2007, com o título ‘Wasington’ (sem o h). Pode-se até discordar das ideias do cineasta, mas sua capacidade de inquietar o público é inegável. Bom para quem ainda acha que cinema é bem mais que um pretexto para comer pipoca.

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