quinta-feira, 17 de março de 2011

No jogo da vida


Existem duas facetas de Walter Salles. A primeira de quando trabalha sozinho, elaborando um cinema muito mais lírico do que realista, como que colocando um filtro poético sobre uma realidade difícil. Assim foi em ‘Central do Brasil’, ‘Abril Despedaçado’ e ‘Diários de Motocicleta’. A outra se revela quando dirige em parceria com Daniela Thomas, onde o foco se inverte, revelando uma proposta menos imagética e mais humanista, calcada nos personagens. É o caso de ‘Terra Estrangeira’ e ‘O Primeiro Dia’. Retomada após dez anos, a parceria rendeu ‘Linha de Passe’, filme que traz a dupla mais amadurecida, equilibrando o lirismo de Salles e a crueza de Daniela.
Àqueles menos familiarizados com o meio futebolístico, linha de passe representa a troca de bola entre os jogadores até que se chegue ao gol. Nada mais adequado para metaforizar o quadro de personagens retratado pelos diretores. Uma mãe solteira grávida e seus quatro filhos homens residindo na periferia de São Paulo. Como em um time de futebol, um depende do outro para tentar superar o adversário, às vezes tão próximo quanto intransponível.
Dario (Vinicius de Oliveira, o garoto de ‘Central do Brasil’) sonha em se tornar jogador de futebol profissional, é habilidoso, mas o avanço da idade vai dificultando cada vez mais a concretização do sonho. Dinho trabalha como frentista e dedica suas horas vagas à igreja evangélica. Dênis é motoboy, tem um filho para sustentar, vive sem dinheiro e está no limiar do ingresso à marginalidade. Reginaldo, o mais novo, é negro e passa a maior parte do dia andando de ônibus à procura do pai que jamais conheceu. No centro de todo esse turbilhão está Cleuza (Sandra Corveloni, premiada como melhor atriz no Festival de Cannes), empregada doméstica, grávida do quinto filho e que sustenta a barra dos quatro rebentos.
O retrato de família composto por Salles e Daniela ilustra os caminhos que guiam os passos de muita gente na periferia das grandes metrópoles: o futebol, a religião e o crime. O grande mérito dos diretores é não enveredar por nenhum deles, evitando a postura moralista de indicar o que é certo e o que é errado. Se em um primeiro momento eles parecem deixar seus personagens à deriva, basta um pouco de paciência para perceber o olhar carinhoso lançado sobre a família. Sempre que algo está a dividi-los, surge um motivo para uni-los novamente.
A utilização de nomes desconhecidos no elenco faz com que ‘Linha de Passe’ ganhe contornos ainda mais realistas, sem as maquiagens aplicadas por Salles em outros tempos para atenuar o tom sôfrego. A poesia dessa vez está nos próprios atores, principalmente nos olhares, imersos na realidade, mas sempre apontados para um horizonte esperançoso. A fotografia opaca e a trilha sonora sempre marcante do argentino Gustavo Santaolalla completam o referencial poético. Dizer que é um filme otimista ou pessimista seria reducionista demais. O desfecho, que evita cair em qualquer tipo de maniqueísmo, fala por si só.

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