quinta-feira, 17 de março de 2011

Filhos do cárcere


Apesar de serem vizinhos e terem mais em comum do que muita gente imagina, Brasil e Argentina mantêm um estranho distanciamento no que se refere a produtos culturais. É estranho pensar que às vezes conhecemos muito mais de norte-americanos e europeus do que ‘nuestros hermanos’ que estão tão próximos. O contato mais íntimo com o cinema portenho é fato recente, motivado mais pelo boom no circuito alternativo mundial do que por iniciativa nossa. O pouco que nos chega não raro é compensador, como o tocante ‘Leonera’, que tem lá seus laços com o Brasil.
‘Leonera’ é obra de Pablo Trapero, um dos principais nomes do cinema argentino na atualidade. Revelado com ‘Mundo Grúa’, fez a fama no circuito de festivais internacionais e passou pelos cinemas brasileiros com preciosidades como ‘Do Outro Lado da Lei’ e ‘Família Rodante’. Nas palavras do próprio cineasta, seus personagens buscam ‘organizar suas vidas nas condições em que lhes é dado viver, procurando criar um ambiente harmônico no meio do caos’.
Assim é com Julia Zárate, a protagonista e quase personagem única de ‘Leonera’. O filme começa com ela acordando toda ensanguentada. Como se nada tivesse acontecido, toma um banho e vai para a universidade. Ao retornar, se dá conta do que aconteceu: seu namorado está morto e o amante dele ferido. Ela não se recorda do que se sucedeu e vai presa acusada de ser a assassina. Julia está grávida e vai para um setor da prisão destinado às mães, que convivem com seus filhos pequenos como se estivessem em um condomínio.
A ‘Leonera’ do título é como se denominam as áreas de trânsito nas prisões argentinas, onde os detentos aguardam antes de deixar a carceragem para saídas temporárias. Mas também é uma referência à leoa mãe, que protege sua cria com unhas e dentes. Essa é a mãe na qual Julia se transforma, para quem o filho é sua vida, um dos elos com a humanidade que ainda lhe restam. Na Argentina, a lei permite que as presas permaneçam com seus filhos na prisão, estudando inclusive, até os quatro anos. Uma das ideias do diretor, ao conceber o filme, foi justamente colocar em debate essa situação.
Diferente da maioria dos filmes passados no cárcere, ‘Leonera’ não adota um tom de denúncia, enfocando questões como abusos e maus tratos. Não se trata de um ambiente normal e saudável, claro, mas Trapero faz questão de enfatizar o aspecto humano, de solidariedade e carinho que resiste em meio ao ‘caos’. Mesmo com a força e o peso de algumas situações, a narrativa se apoia na sensibilidade, tendo como epicentro o desempenho de Martina Gusmán. Sua Julia é de uma energia arrebatadora, enchendo a tela do primeiro ao último minuto.
Há no filme duas ligações diretas com o Brasil. Uma a co-produção de Walter Salles e a outra a presença de Rodrigo Santoro, que interpreta Ramiro, ex-amante do namorado de Julia. Indiretamente, porém, é possível detectar muitas outras semelhanças, no aspecto social e na forma de se fazer cinema. Ao contrário do que propõe a rivalidade instigada pela mídia, temos muito a aprender uns com os outros.

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