quinta-feira, 17 de março de 2011

Estranho, mas nem tanto


Uma das coisas mais apaixonantes no cinema é a possibilidade de trazer à vida situações surreais, completamente fora da realidade. Popularmente falando, o tal ‘viajar na maionese’. Para quem vive da escrita, nada mais divertido do que brincar com o próprio processo criativo, dar novas dimensões à relação criador/criatura, ou melhor dizendo, autor/personagem. ‘Mais Estranho que a Ficção’ é uma dessas brincadeiras, que parece ter nascido em uma conversa de bar após algumas cervejas, ou em algum banco de faculdade durante uma aula gazeada.
A pergunta que o novato roteirista Zach Helm fez foi: ‘e se um dia alguém descobrisse que na verdade é o personagem de um livro?’ A partir dessa premissa, nasceu Harold Crick (o comediante Will Ferrell), auditor da Receita Federal que leva uma vida burocrática ao extremo, na qual tem contado até mesmo o número de escovadas nos dentes a cada manhã. É justamente numa dessas manhãs que começa a ouvir uma voz narrando todos os seus atos. Esquizofrenia? Não, apenas sua vida que está sendo contada em um livro.
A voz ouvida por Harold é de Karen Eiffel (Emma Thompson), uma renomada escritora britânica conhecida por matar seus personagens principais ao final de cada obra. Quando descobre que está prestes a morrer, o personagem se lança numa tresloucada tentativa de evitar que isso aconteça. Para tal, busca ajuda do professor Jules Hilbert (Dustin Hoffman), especialista em literatura, enquanto tenta salvar seu romance com uma confeiteira (Maggie Gyllenhaal).
Em todas as resenhas e críticas, o trabalho de Zach Helm e do diretor Marc Forster (de ‘A Última Ceia’ e ‘Em Busca da Terra do Nunca’) é comparado ao inventivo Charlie Kaufman, roteirista dos amalucados ‘Quero Ser John Malkovich’, ‘Adaptação’ e ‘Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças’. De fato, existem semelhanças no uso da metalinguagem e no tratamento cômico de personagens que passeiam entre a ficção e a realidade. Helm, porém, ainda se mostra mais tímido e obrigado a fazer algumas concessões ao grande público.
Os melhores momentos de ‘Mais Estranho que a Ficção’ são justamente aqueles em que não tem medo de extrapolar o limite do lógico e racional. Por exemplo, quando o personagem principal tenta conciliar seus atos com a narrativa em sua cabeça. Ou então, quando junto com o professor, busca descobrir se sua vida seria uma tragédia ou uma comédia. É uma pena, porém, que o diretor não consiga sustentar o mesmo tom ao longo de todo o filme e, principalmente no final, acabe tentado por enquadrar a história nos padrões hollywoodianos.
De todo modo, ‘Mais Estranho que a Ficção’ é uma diversão diferenciada. Além do roteiro inventivo e inteligente, conta com um elenco bastante afinado. Will Ferrell, visto até então em uma série de comédias bestas, foge do caricato ao encarnar o burocrata que não é capaz de rir nem quando conta uma piada. É bom também ver veteranos talentosos como Emma Thompson e Dustin Hoffman exibindo a boa forma bem à vontade em seus papéis. Por fim, vale aos fãs dos Beatles ficarem atentos para as diversas referências à banda. Enfim, não é tão estranho quanto deveria, mas é ficção de ótima qualidade.

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