sábado, 12 de março de 2011

De olhos bem abertos

 
É preciso uma boa dose de coragem para adaptar certos escritores ao cinema. Não que eles sejam intocáveis ou suas obras sejam completamente intransponíveis para a tela grande, mas pela peculiaridade e grandiosidade da escrita, que exige uma dose ainda maior de responsabilidade para ser traduzida em imagens. O português José Saramago é um desses autores. Por mais visuais que sejam algumas de suas obras, fica difícil imaginar todo o encanto proporcionado por suas letras nos sendo transmitido através de uma tela de cinema. O brasileiro Fernando Meirelles encarou esse desafio e não fez feio: ‘Ensaio Sobre a Cegueira’ pode não estar à altura da obra de Saramago, mas é uma adaptação no mínimo respeitável do impactante livro, que faz uma reflexão um tanto cruel da humanidade.
De repente, em pleno trânsito, um motorista se vê completamente cego. Diante de si não está uma escuridão como a que estamos acostumados quando fechamos os olhos, mas uma cegueira branca, como se estivesse ‘mergulhando em leite’. Em pouco tempo, as demais pessoas que mantiveram contato com o motorista começam a padecer do mesmo mal, que se transforma em uma epidemia avassaladora. Os ‘doentes’ são mandados a um alojamento para quarentena e a quantidade de novos habitantes só aumenta a cada dia que passa.
No núcleo da história estão os primeiros a chegar ao local, um médico oftalmologista (Mark Ruffalo), sua esposa (Julianne Moore), uma jovem garota de programa (a brasileira Alice Braga), um velho (Danny Glover) um casal de japoneses e um garoto. A esposa do médico é a única a não ser atingida pela epidemia, mas mantém o segredo enquanto assiste a um espetáculo melancólico e desolador. O caos definitivo se instala quando um grupo liderado por aquele que se intitula o rei de uma das alas (Gael Garcia Bernal) decide assumir o comando, condicionando a distribuição de comida à entrega de bens materiais. A tensão aumenta, transformando o espaço em uma terra sem lei e de conflitos crescentes.
Não é difícil enxergar na obra de Saramago uma metáfora da sociedade humana, onde a igualdade logo se transforma em choque de interesses. A falta de visão, que a princípio é um fator que torna todos semelhantes, pode ser rapidamente revertida em uma perversa estratégia de sobrevivência. Sob a perspectiva de Saramago, a natureza humana é cruel e, como na ‘Revolução dos Bichos’ de George Orwell, faz com que todos sejam iguais em um primeiro momento, ‘mas uns mais iguais que outros’.
Para levar esse cenário apocalíptico aos olhos do espectador, Fernando Meirelles não economiza nos recursos. A fotografia de César Charlone é de um branco estourado, às vezes desfocado, procurando traduzir ao máximo a estranha cegueira vivida pelos personagens. Os figurinos, cenários, as sequências de conflito não poupam nossos olhos do impacto de uma sociedade degradante e descontrolada. Esse foi um dos fatores que levou o filme a ser amado e odiado na mesma medida. Mas se o próprio Saramago se mostrou satisfeito, tecendo elogios à versão cinematográfica, talvez é porque tenha sido essa sua intenção: abrir nossos olhos para ver em que nos transformamos.

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