terça-feira, 17 de maio de 2011

Uma Lição de Cinema


Por razões que fogem à nossa alçada, criou-se no Brasil um preconceito besta, alimentado por um sentimento pseudo-ufanista, contra nossos vizinhos argentinos. Mais do que a propalada rivalidade futebolística, essa visão torpe muitas vezes faz com que se torça o nariz para o que vem daquele lado do Rio da Prata, excetuando-se os vinhos e alfajores, claro. Mal sabem esses brasileiros tomados pela soberba que os tais hermanos têm muita coisa a compartilhar e até nos ensinar. ‘O Segredo dos Seus Olhos’, por exemplo, pode ser uma ótima aula de como se fazer cinema popular de alta qualidade, sem se perder na pretensão ou desdenhar da inteligência do espectador.
Essa magnífica produção argentina, que bateu recorde de bilheteria em sua terra natal, conseguiu no início do ano aquilo que o cinema brasileiro sempre almeja, menos por reconhecimento artístico do que por uma necessidade de auto-afirmação: o Oscar de filme estrangeiro, a consagração da periferia perante o Olimpo de Hollywood. Há quem se pergunte: mas por que eles conseguem e nós não? A explicação é mais simples do que se imagina. Mais do que qualidades técnicas e artísticas, ‘O Segredo dos Seus Olhos’ tem carisma.
Dirigido por Juan José Campanella, até então conhecido no mercado exterior pela comédia ‘O Filho da Noiva’, ‘O Segredo dos Seus Olhos’ é um misto de suspense, filme noir, drama intimista e romance. Ricardo Darín, ator-fetiche do cineasta, é o oficial de justiça Espósito. Já aposentado, ele decide escrever um livro baseado em um caso que investigou 30 anos atrás, quando uma moça foi brutalmente assassinada. A narrativa intercala então os dias atuais, quando Espósito reencontra Irene, colega que o auxiliou no caso, e as memórias que reconstroem a investigação.
Mesmo usando da manjada técnica de ir e voltar no tempo, Campanella consegue elaborar uma narrativa deliciosamente envolvente. A princípio em torno do crime em si e seu provável assassino; a seguir no que se refere às circunstâncias e o desdobramento do assassinato; e, por fim, no relacionamento ambíguo entre Espósito e Irene. Momentos de tensão, pitadas de humor, doses de romantismo, tudo é colocado na medida certa para não enfastiar o espectador, reservando alguma nova descoberta até os últimos minutos.
Retornando ao questionamento do início: o que esse argentino tem que nós não temos? A facilidade em se comunicar com o público. Ao mesmo tempo em que elabora uma trama sólida, aparentemente complexa, recorre a elementos de fácil assimilação, se aproximando da narrativa clássica e dos chavões. A última vez que um filme brasileiro conseguiu utilizar dessa fórmula com sucesso foi ‘Cidade de Deus’, há quase dez anos. Isso explica muita coisa.
Para completar, ‘O Segredo de seus Olhos’ tem a sequência mais magistral já filmada em um estádio de futebol, o que já vale a sessão. Portanto, se alguém ainda insiste em fazer vistas grossas ao que se produz do outro lado da fronteira, é pela mais pura ignorância.

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